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Luz conta Escuridão

         A Humanidade estava à mercê do acaso, e ainda é um mistério se já era órfã ou se havia sido abandonada. Seu destino, aparentemente, era perecer rapidamente e abandonar a Existência, deixando nenhum ou muito pouco registro de si.

         Mas embora o futuro ocorra em simultâneo com o passado e o presente, apenas o guardião do Tempo sabia que o fim da Humanidade seria menos triste e mais tardio do que supunham os que compartilharam daquela era. Isso porque um casal que era o perfeito exemplo de Yin e Yang a adotou.

       Por mais que a Humanidade fosse uma garota problemática, a Luz e a Escuridão tinham certeza de que o amor que compartilhavam seria o suficiente para fortalecer a garotinha e fazê-la crescer, mesmo que fossem (a Luz e a Escuridão) muito diferentes entre si. Essas diferenças que antes agiam como que em simbiose entraram em atrito quando expostas para a criação da criança.

         – Acredito que seria mais saudável se eu passasse mais tempo na compa-nhia dela que você – a Luz disse, em determinado momento.

        A Escuridão escutou e terminou de moldar o sonho em que vinha traba-lhando, antes de voltar sua total atenção à Luz. Era nítido que não via motivos para concordar com a declaração da companheira, mas não iria negar-lhe a oportunidade de defendê-la.

         – E no que se baseia essa ideia? – questionou.

         – Penso que você possa estar influenciando demais.

        A Escuridão continuou a fitá-la, dizendo em silêncio que ainda esperava uma exposição mais concreta.

        – Não se ofenda, por favor – a Luz pediu.

        – Não irei.

      – Acredito que influências suas possam ser prejudiciais. E digo o motivo de pensar assim.

        – Pois diga.

     – Sua influência impedirá a clareza de pensamentos lógicos. Temo que a cegueira a faça tropeçar, cair e se machucar. Tenho receio de que ela se perca em você. Ou pior, que as trevas façam com que se perca em si mesma.

     A Escuridão achou graça, rindo da companheira de uma maneira não debochada.

         – As trevas que emanam de mim não são uma maldição – disse seriamente. – Elas irão proporcionar a manifestação de uma das melhores habilidades de nossa filha, a imaginação. É do escuro que surgem os sonhos.

        – Que podem tornar-se pesadelos – a Luz rebateu, olhando para o que a outra segurava.

         A Escuridão fitou o sonho recém moldado que portava; havia se tornado um pesadelo terrível. Refletiu bastante antes de dizer:

     – Se quisermos que sonhe, temos de aceitar que alguns sonhos sejam desagradáveis. Poupá-la do ruim é privá-la do bom. Minha influência não é a única que pode fazer com que ela caia. Se puder ver todos os caminhos, vai querer percorrer todos, e ao mesmo tempo. A impossibilidade de trilhar por todos fará com que corra. Correr fará com que caia. Cair fará com que machuque.

     – Há esse risco. Mas é inegável que minha influência lhe dá clareza da existência como um todo.

        – Sem dúvida.

        – Ela não pode se limitar à sua imaginação. Ela tem de ter clareza para livrar-se de ideias antiquadas e libertar-se para o conhecimento e para a verdade.

        – Ainda a acho muito jovem para as verdades. As verdades são horrendas.

        – Mas não podemos negá-las a ela.

        – O que vale mais? – a Escuridão questionou, agora com uma seriedade mais elevada – Possuir a verdade e sucumbir com sua imensa força devastadora, ou abrigar-se confortavelmente em meio a ignorância?

        – Na ignorância morre sem saber.

        – Mas vive sem se entristecer.

       A Luz estava perplexa e prestes a retorquir. A escuridão fez um gesto, pedi-ndo uma oportunidade para se esclarecer, o que a Luz concedeu.

      – Não pense que quero impor minha influencia de forma integral à nossa filha. Acredito que ambas somos saudáveis para ela. O que tenho em mente é um meio termo, jorrar nossas dádivas e suas possíveis consequências colaterais em igual quantidade. Ela mesma poderá, com o tempo, escolher o que mais lhe agrada. Como saber quando ela estará pronta para as verdades e que apenas sonhar não lhe basta? Talvez esse momento nunca chegue, talvez ela nunca cresça o bastante. Se ela se tornar forte o suficiente, poderá buscar um amparo maior em você. Caso não, posso acolhê-la com igual carinho. Penso que, no fim, é ela quem deve escolher; pesadelo ao meio dia, ou vela na escuridão.

    A Luz refletiu sobre as palavras de sua companheira e concordou que a influência das duas eram primordiais para que a Humanidade amadurecesse. Sabia, no entanto, que sua companheira jamais se daria conta de seu alto potencial destrutivo antes do desastre total. Combinou de emanar para a filha adotiva influência em igual densidade que a Escuridão, mas em segredo lançava um pouco mais. Estava convicta que a verdade devastadora era melhor que a ignorância agradável. Nada na Existência se torna grande na ignorância. Não seria justo privar a Humanidade de tornar-se grande.

        Se ela se tornou ou não, é algo que não estou apto a dizer.

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