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Ilha dos Carecas

      Havia uma ilha isolada no oceano, portadora de uma pequena sociedade de cultura e crença muito peculiares. Uma das suas características que me chamou a atenção era o fato de não se interessarem em descobrir como seus antepassados chegaram até a ilha.

     O maior tesouro deste povo era o mel. A ilha possuía um cheiro doce característico nas casas, áreas de convivência social e o que seriam os estabelecimentos comerciais, mas que na verdade eram centros de troca de mercadoria. O mel não era, no entanto, mercadoria. Bastava pedir para receber, e às vezes recebia-se sem que tivesse sido pedido.

      Era tido, por parte dos habitantes da ilha, o costume de raspar a cabeça sempre que alguma coisa lhes deixasse muito tristes ou de luto. Interessante pensar que não era estabelecido nenhum tipo de padrão ou norma que ditasse quando algo era triste o suficiente para raspar ou não, e que era um povo onde pessoas com problemas de calvície eram raríssimas. Mais interessante ainda era como as pessoas de cabeça raspada jamais eram abordadas sobre o que as entristecia: se alguém tinha o interesse de saber o que aconteceu a alguém, perguntava a outros que pudessem responder; e estes outros costumavam suprir a curiosidade, sempre de modo que o alvo da atenção desconhecesse ter suas infelicidades como assunto.

      Esforcei-me muito para aprender seus costumes, de modo que pudesse viver entre eles e estudá-los. Durante o tempo que vivi lá, via passar por mim regularmente um homem que descobri chamar-se Güirienguer. Enjoei-me de comer mel (embora nunca tenha me enjoado de seu cheiro doce) muito antes de perceber que ele jamais deixava o cabelo crescer. Em anos de convivência com aquele povo, Güirienguer nunca mostrou-se com mais de dois milímetros de fios.

      Certamente perguntei para muitos o motivo de tamanho luto; ninguém soube me responder. Aparentemente sua família vivia bem e também desconhecia suas razões. Minha curiosidade aumentou e fiz amizade com ele (ou ao menos estabeleci no início uma relação que gosto de pensar como amizade), no intuito de tentar obter alguma pista.

      Devo esclarecer que, embora minha aproximação tenha se dado pela curiosidade, nossa relação não tinha apenas isso como base. Logo, não devo ser tomado como alguma espécie de interesseiro, pois certamente não faltará quem concorde comigo quando digo que pouco do que foi construído no mundo atingiu sua forma final baseado somente no que era quando foi idealizado. Com isso quero dizer que, embora eu tivesse apenas interesse em sua infelicidade quando o conheci, não foi nisso que nosso relacionamento final se baseou. Afinal de contas, nos apaixonamos um pelo outro, e tal coisa não se firma em mero interesse.

      Descobri, é claro, o motivo de seu luto constante, mesmo que ele não aparentasse, em aspecto algum quando em meio a todos, infelicidade. Muito pelo contrário, era alegre e tinha energia. Nada melancólico. Nada depressivo. E seu luto, confesso, não me fez muito sentido no início, mas ele acabou me fazendo compreender.

      Nossas conversas sobre isso foram mais complexas e graduais, mas não disponho de maneiras de narrá-las exatamente como foram, de forma que fico limitado a lhes apresentar uma versão mais sucinta, porém com a promessa de fazer meu melhor para deixá-la o mais rica possível.

      Considerem inicialmente que eu tenha perguntado a ele de forma direta o motivo do luto constante, eis sua resposta:

      – Considero que todos os outros que não são eu são uma extensão de mim – ele respondeu.

      Perguntei:

      – Então isso é pela tristeza das outras pessoas, e não a sua?

      – Não é tão simples. Se eu começar a explicar poderiam pensar, no início, que trata-se de uma questão estética. Ao julgar tratar-se disso, tenderiam a julgar-me tolo e a partir daí nasceria um preconceito que iria distorcer tudo o que eu dissesse a seguir. Caso tal coisa não ocorresse no início, logo à frente da explicação poderiam julgar que trata-se de algo construído sobre egoísmo e hipocrisia, e nasceria ali um preconceito de natureza e consequência diferente do que é possível no que citei antes. E caso conseguissem acompanhar-me perseverantemente até o fim, poderiam não me entender.

      – Experimente comigo – pedi.

      – Surge da necessidade de ser diferente. Seria daí que surgiria a ideia de tratar de algo estético. Mas a minha necessidade específica de ser diferente traz consigo algumas implicações. Considerando que ninguém é igual a ninguém, o que faria de alguém alguém diferente, quando todos já o são? Certamente alguém que tenha algo que ninguém mais tem, certo? Poucas coisas pode ter um homem que algum outro homem não tenha tido antes. Consigo pensar apenas em uma, mas digo poucas por considerar que talvez haja algo mais que não tenha conseguido pensar.

      – Que coisa é essa? – perguntei.

   – O pensamento. Mas como eu já considerei antes que todos são diferentes, certamente todos pensam de maneiras diferentes. Logo, se eu quiser diferenciar-me em meio a tantas diferenças, devo procurar fazê-lo de uma maneira melhor. Entende o que quero dizer?

      – Você diz procurar ser melhor que os outros em algum aspecto?

      – Exatamente. E é daí que poderia surgir a ideia de ego e hipocrisia. Porque eu me eduquei de tal modo, que passo a me importar com as pessoas mais que importo comigo mesmo. Se eu disser que a pessoa que mais merece mel é aquela que preocupa-se com que haja mel para todos os outros quando sabe que ele mesmo não receberá mel algum, você concordaria comigo?

      Certamente tive de refletir, pois não havia entendido. Quando me veio a clareza compreendi que ele havia feito uma analogia com mel, coisa frequente naquela ilha. De certa maneira ele dizia que o mel era a religião de seu povo (que adivinhem só, tinha muito a ver com abelhas e a benção que elas traziam para eles) e que ele não acreditava no deus abelhão. Acreditavam (aquele povo) que a morte traria uma espécie paraíso onde não faltaria mel (o que não era tão grandioso assim, já que não lhes faltava mel em vida), e Güirienguer não acreditava em tal baboseira.

      Portanto, ele não acreditava que havia um paraíso doce, mas gostaria que existisse para que as pessoas que ele amava pudessem ser felizes; e ao desejar algo assim para os outros e não para si, tornava-se muito mais merecedor que todos os outros. Quando compreendi, concordei. Mas para muitos isso é inconcebível, principalmente para os que estariam convictos com o mel eterno. Daí surgiria, acredito eu, a ideia de ego disfarçado e hipocrisia. Comentei:

      – Poderão dizer que esse pensamento é falho. Que é algo implantado em você por vocêmesmo. Que você se convenceu.

      – Então terei atingido meu objetivo – ele disse, rindo. – Eu sei que é algo real e que existe em mim. Se a maioria não conseguir compreender, torno-me diferente entre os diferentes. Se alguns conseguirem compreender, terei sido o primeiro a pensar assim. E se por acaso não tiver sido o primeiro e não for o único a pensar assim, continuarei um diferente entre os diferentes, pois certamente poucos o são. E o ato de raspar a cabeça é simbólico, me permite não esquecer que há outros que, ao contrário de mim, entristecem-se e sofrem por infelicidades e injustiças; e que tais desgraças os fazem merecedores de um mel que nunca provarão. E isso, essa última coisa que eu disse, é o que realmente me entristece

      Esse diálogo não ocorreu de forma direta assim, se deu por alguns anos em que ele tentava me explicar de muitas formas. No final desses anos, a ferroada atingiu a ilha. Tratava-se de uma doença proveniente de outras terras que mostrou-se muito eficiente em ser transmitida por mel. Tornou-se uma epidemia naquele povo e o devastou quase que completamente. Güirienguer adoeceu, mas permaneceu convicto de suas ideias até o fim. Somente assim me convenci que não havia hipocrisia nele, mesmo que muito escondida a ponto dele mesmo não conseguir encontrar. Ele me deu um último beijo doce (sim, com sabor de mel) pouco antes de morrer.

      E hoje estou aqui, de volta ao meu país, falando e ensinando para alguns alunos tudo o que sei sobre aquela ilha e da saudade que sinto de seu cheiro doce.

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