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Templo do Tempo

     Estava em meio a um assalto quando levou um tiro: PÁ!

     Não sentiu o corpo cair no chão, não sentiu as pálpebras fecharem. Por um tempo apenas um nada, até que sua consciência voltou, demonstrando que não havia caído em inexistência.

     Antes mesmo de abrir os olhos, soube que estava de bruços com o rosto virado de lado e babava. Levantou-se atordoado em meio a um corredor com paredes pintadas com formas engraçadas. Quando de pé seguiu em uma das direções, observando que cada metro de cada parede mostrava coisas que aconteceram no mundo, baseado em todos os livros de historia que já havia lido. De fato, algumas dessas imagens eram cópias perfeitas e ampliadas de ilustrações que ele tinha certeza já ter visto em alguns livros. Outras imagens lhe pareciam familiares, mas não sabia dizer se as havia visto ou não.

     O silêncio naqueles corredores era absoluto. Era possível ouvir seu coração batendo se parasse para prestar atenção (ou talvez não o ouvisse, e sim sentisse o sangue sendo bombeado, o que poderia confundir os sentidos). Apenas seus passos eram certos que ouvia.

De tanto silêncio surgiu um ruído engraçado. Um nhec-nhec baixinho invadiu seus ouvidos na medida em que andava pelos corredores. Ficou intrigado, pois não era capaz de distinguir de onde vinha.

     Continuou andando e observando as pinturas nas paredes e, quando assustou, havia chegado a um salão redondo, com pilares de pedra que iam do chão até um teto em forma de cúpula a quinze metros de altura. No centro havia uma espécie de palco (ou seria um altar?) com um trono virado de costas para ele.

     Ele caminhou rapidamente e deu a volta, com seu coração acelerado, esperando encontrar Deus ali.

     Sua decepção foi grande.

     Havia ali uma pessoa velha que dormia com a cabeça pendendo de lado. Bastou uma rápida olhada para que ele se reconhecesse, décadas mais velho.

     – Ei! – disse baixinho.

     No entanto, seu eu velho continuou dormindo.

     – Ei! – voltou a falar, mais alto.

   O velho soltou um ronco e levantou a cabeça, com os olhos levemente inchados. Olhou para ele e sorriu... não estava banguela.

     – Quem diria, você chegou – o velho disse.

     (nhec-nhec baixinho)

     – Você sou eu? – ele perguntou.

     – Depende das coisas que você atribuiria como parte daquilo que o faz ser o que é.

     – Âhm? – ele exclamou, sem entender.

     – Vou explicar melhor – o velho disse. – Quase tudo aquilo que compunha seu corpo já não existe mais em mim. As células que você possui morreram e deram espaço às minhas células. O sangue que corre em suas veias foi reciclado e já não é o mesmo sangue que corre nas minhas veias. Muitas das suas convicções e ideologias deram espaço a novas, que são as minhas agora. Então digo novamente: depende muito do que você atribuiria como parte daquilo que o faz ser o que é para ter certeza que somos a mesma pessoa.

     (nhec-nhec baixinho)

     Ele não sabia o que dizer diante daquilo. Ficou olhando para seu eu mais velho (ou alguém mais velho que não era ele, estava confuso) por um tempo antes de perguntar:

     – Cara, você sou eu ou não?

     – Sou um xerox de um xerox. Sou uma cópia do que um dia foi uma cópia de alguma outra cópia, seguindo essa linha por anos até que cheguemos a você que, de forma engraçada, teria de retroceder anos até chegar ao original. Se é que um dia houve um original.

     – Então você sou eu modificado – ele perguntou.

     – Se assim for para fazer com que você entenda, sim – o velho respondeu, aprumando-se em seu trono e estalando sua coluna, soltando uma exclamação de alivio.

     (nhec-nhec começa a chamar a atenção)

     – Onde nós estamos? – ele perguntou, satisfeito com a resposta.

     – Gosto de pensar neste lugar como “O Templo do Tempo” – o velho respondeu.

     – E onde fica?

     – Se você não entendeu o que eu expliquei agora a pouco, com certeza não entenderá isso.

     – Como pode ter certeza disso? – ele perguntou.

     O velho sorriu novamente, deu uma estalada no pescoço e disse:

     – Eu conheço você, embora você ainda não me conheça.

     – Experimente me contar.

     – Este templo fica no meio do nada. Não há saída, não há entrada. Pode vagar entre suas lembranças sem nunca encontrar uma porta. Esteja ela aberta ou esteja ela trancada. Ainda assim, no nada, o Tempo passa. Pois sem o Tempo haveria apenas a inexistência.

     – E como podemos falar, sentir e pensar, existimos – ele sugeriu, acreditando estar sendo esperto.

     – Isso é você quem está dizendo – o velho respondeu, com indiferença.

     – Então estou preso aqui para sempre?

     – Bem, se está preso não sei – o velho disse, começando a estalar os dedos. – Sei que, caso esteja, não será para sempre. Acredite, você não está entre as coisas que durariam para sempre. Somente aquilo que o forma é que possui potencial para durar para sempre... ou por um tempo consideravelmente longo.

     (nhec-nhec começa a incomodar)

     – O que me forma não me faz ser o que sou? – ele pergunta.

     – Vou explicar, pois sua pobre mente ainda está pequena. Tudo o que lhe dá forma, seja célula, molécula, átomo ou o que quer que seja, existe a milhões ou bilhões de anos. Parte disso pode ter sido parte de uma estrela, ter feito parte da colisão de um cometa com um planeta ou ter formado antes diversos outros seres, animais e pessoas do passado que você sempre detestou. Parte do que forma você pode ter sido parte da estrutura da casca do ovo de um dinossauro, uma unha grande demais que foi cortada com um alicate por uma manicure de um país vizinho ou composto as fezes de um gato sendo depositada numa caixinha de areia. O que lhe dá forma e vida sempre existiu, mas seria isso o que você é?

     O velho terminou de dizer e o encarou, rindo. Diante da incapacidade dele de responder, o velho continuou:

     – Vou ajudá-lo com isso, meu velho amigo. O que o faz ser o que você é é a sua consciência. Seus pensamentos, ideias, ideais, experiências, sentimentos, empatias... a única coisa em você que nunca existiu e que nunca mais existirá quando seu corpinho for desmanchado para formar outras coisas são seus pensamentos. Entendeu agora?

     – Entendi – ele respondeu.

     (o barulho de nhec-nhec invade seus pensamentos. Começa a ficar realmente incômodo).

     – Que barulho é esse? – ele pergunta ao velho.

     – Não sei dizer. Vez ou outra ele aparece.

     – Nunca procurou saber o que é?

     – Apenas reflito – o velho respondeu. – Cheguei a várias conclusões. Uma mais improvável que a outra.

     – Pode me dizer quais são essas conclusões? – ele pediu.

     – Sinceramente? Não acho saudável lhe dizer – o velho disse. – Supondo que você passará um bom tempo aqui (talvez para sempre, como você sugeriu), seria interessante garantir que você tenha ao menos algo para pensar e refletir.

     – Está ficando mais alto – ele disse, virando a cabeça e as orelhas nas mais variadas direções para tentar identificar a direção do barulho.

     – O que você acha que pode ser? – o velho perguntou.

     – Há! Há! Há!, Você não quer me contar e espera que eu lhe conte?

     – Mas você não sabe o que é – o velho disse, rindo.

     – Começo a achar que você não conseguiu pensar em nada e quer saber o que eu acho a respeito.

     – Se pensa assim – o velho disse, sacudindo a mão direita em sinal de indiferença. – Aproveite o tempo para tentar encontrar uma resposta.

O barulho estava realmente incômodo. Ele começava a achar que não conseguiria pensar em mais nada enquanto não descobrisse a origem e, se possível, fizesse o barulho irritante cessar.

     Foi até o outro lado do salão, entrou num corredor de paredes ilustradas e saiu a procura do barulho.

     Minutos depois o som ficou mais alto. Antes parecia vir de todas as direções, agora ele tinha certeza que vinha de sua esquerda, como se atravessasse as paredes.

     Passou a virar para as todas passagens à esquerdas que encontrava, e o barulho sempre continuava vindo desta direção. Em determinado ponto ele parou intrigado: virara tanto para a esquerda que tinha certeza que havia feito um circulo. Logo, o barulho deveria ter vindo da direita em algum ponto. Não soube o que pensar daquilo, resolveu continuar seguindo a direção do som.

     Pouco depois chegou novamente ao salão, saindo por um corredor diferente do que havia entrado. O velho riu e perguntou:

     – Encontrou algo?

     – Não.

     – Continue procurando, não vai encontrar nada.

     – Como sabe se só fica aí sentado? – ele perguntou.

     O velho riu mais uma vez e disse:

     – Como eu falei, esse barulho aparece uma vez ou outra. Olhe para mim. Há quanto tempo acha que estou aqui? Não acha que já percorri esses corredores procurando a mesma coisa que você?

     O jovem não soube o que dizer. O barulho estava alto e o incomodava. Ele passou horas andando entre suas lembranças e estava cansado.

     – Posso me sentar um pouco aí? – ele pediu ao velho, indicando o trono em que ele estava.

     – Sente-se no chão, se quiser – o outro respondeu. – Se estiver realmente cansado, deite-se. Se quiser um conselho, deite-se de costas para o chão e dobre a perna, para que a coluna fique bem alinhada. Acredite em mim, vai desejar ter evitado má postura se chegar na minha idade e sentir as dores que sinto na coluna. Eu costumo...

     O nhec-nhec de repente ficou muito alto, e ele quase não conseguia ouvir o que o velho falava, embora este parecesse indiferente, por continuar no mesmo tom de voz.

     – ...exercícios que ajudam... ficar atoa e parado não... diferentemente de tudo o que pensei antes... claro que, de acordo com o raciocínio... também o senso comum...

     – Fala mais alto – ele gritou para o velho.

“Mais alto?” ele viu os lábios do velho perguntarem, com uma expressão intrigada.

     – Não estou ouvindo o que você está...

     Uma claridade invadiu seus olhos e embaçou sua visão. Quando ela acostumou-se com iluminação viu que alguns parentes seus estavam ao seu redor, sorrindo contentes.

     Não precisou checar para saber que estava num leito de hospital. À sua esquerda, o barulho infernal continuava. Olhou na direção e viu que uma criança pulava e fazia ranger um leito onde aparentemente estava o pai dela.

     Não conseguiu pensar em outra coisa para dizer se não:

     – Dá para parar de pular aí?, filha da puta!

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