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Despacho

         Cláudia, coitada, é uma mulher religiosa. Eu poderia dizer que ser religiosa não é o que me faz lastimar por ela, mas seria uma meia verdade.

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         Há quem diga que não existem meias verdades, que estas seriam mentiras. Permita-me discordar desses expondo o seguinte: nem toda mentira proferida faz de seu proferidor mentiroso. O que está sendo dito é, certamente, uma mentira. Mas caso quem a diga a tenha como verdade, a verdade que ele conhecerá será esta. Com isso pode-se concluir que o mentiroso é aquele que conta a mentira conhecendo a natureza inverídica que há nela.

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         Mas se quiserem saber sobre meias verdades, me procurem num outro momento, pois não é sobre verdades e mentiras que vim tratar aqui. Não. Vim falar da pobre Cláudia.

 

         Cláudia é uma mulher religiosa, de um tipo muito específi-co: do tipo que vê o Diabo em tudo. Seu mundo está assombrado por demônios, que parecem ter como objetivo pessoal tomar conta de cada pequeno aspecto de sua vida. Se tropeça, é o inimigo querendo derrubá-la. Se engasga enquanto reza, são os demônios impedindo-a de proferir palavras santas. Isso dentre diversas outras atividades demoníacas.

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         Mas recentemente o Diabo encontrou uma maneira muito mais eficaz de atormentá-la, já que aparentemente tornou-se chato para ele manifestar-se através de marcas de refrigerante e discos tocados ao contrário. Falo, é claro, de seu filho Pedro.

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         Para a mãe, Pedrinho tem potencial para ser um perfeito instrumento de possessão do Diabo, e toma muitas precauções para protegê-lo. Vigia de perto o que o filho assiste, lê, escuta e fala. Não o deixa assistir a um ou outro desenho porque são do Diabo. Xinga-o, lhe dá uns bicudos e desliga a TV, enquanto lhe diz alguns palavrões e o chama de encapetado. Tudo para proteger o garoto das más influências demoníacas provenientes das coisas mundanas.

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         Recentemente caminhavam os dois, a zelosa mãe e o pobre filho, por uma das várias ruas do bairro onde moravam. Caminhada tranquila, num dia muito mais ou menos da vida mais para menos do que para mais deles. Então eis que surge no campo de visão da Cláudia uma enorme atrocidade contra a moral de deus. Num canto imundo, junto a um poste, estendia-se um belo pano de prato sobre a calçada com uma bela travessa de alumínio cheia de coisas que a não deveriam estar juntas.

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         Cláudia não conhecia outro nome para aquilo se não macumba. Apertou o passo e ocupou-se em resmungar consigo mesma sobre o absurdo que aquilo era. O que mais lhe causava indignação era que, para oferecer prendas ao Diabo, tivessem sido usados pano de prato e tabuleiro que ficariam ótimos em sua cozinha.

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         Estava tão concentrada nisso que se esqueceu por um momento de Pedrinho. Quando voltou a pensar no garoto notou que este não estava do seu lado. Virou-se para procurá-lo e deu com ele curvado junto à calçada, pegando alguma coisa do tabuleiro e colocando na boca.

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         – Seu filho da puta, o que foi que você pegou aí?

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         O garoto olhou para ela assustado, no meio do ato de pegar novamente algo do tabuleiro.

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         – Bala – respondeu, ficando ereto.

 

         Cláudia vociferou alguns palavrões enquanto caminhava, enraivecida, em direção ao filho. O garoto encolheu-se a cada passo dela, amedrontado. Quando o alcançou, deu um soco na barriga do moleque para castigá-lo. Talvez sentisse remorso depois, mas isso foi ofuscado com a alegria de ver que o golpe fez com que o garoto curvasse para frente e vomitasse.

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         – Isso, jogue essa diabrura para fora, seu burro – ela disse, satisfeita consigo mesma. – Isso é deus ajudando a tirar para fora essa macumba. Onde já se viu comer bruxaria? Agora levanta – ordenou, dando um chute no ar que quase acertou a perna do garoto. – Vai na frente, moleque do diabo.

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         Algumas semanas depois compareceram, Cláudia e Pedrinho, ao posto de saúde local. Isso se deu por Pedrinho estar reclamando de muita dor no abdômen, além de ocasionais vômitos. O diagnóstico, depois de alguns procedimentos, foi úlcera gástrica.

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         – Está vendo, peste dos infernos – Cláudia falou ao filho, sem se importar de estarem na frente do médico –, isso aí é obra do Diabo, por ter comido macumba.

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         Mal sabia ela que a culpa era do soco que havia dado no estomago do filho.

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